domingo, 30 de agosto de 2009

Tudo sobre Nirvana

Até receber a tarefa de fazer a crítica do livro "Nirvana" de Everett True, fazia alguns anos que eu não escutava muito a banda. Nesse aspecto, imagino que eu seja como a maioria das pessoas que como eu tinham 20 e poucos anos quando o vocalista, compositor e guitarrista do Nirvana, Kurt Cobain, morreu em abril de 1994, cerca de dois anos e meio após o lançamento de "Nevermind".

Houve tanto sensacionalismo – palavra inevitável – em torno do Nirvana e o seu fim que posteriormente a música parecia, de alguma forma, encoberta pela publicidade que o fato gerou. Tornou-se algo quase constrangedor escutar no quarto a voz estranhamente sedutora e sarcástica de Cobain, quando jornalistas a definiram como a voz de nossa geração. A ambivalência atormentada da banda relacionada à sua enorme popularidade acabou se tornando uma triste passagem. Quando "Nevermind" foi lançado, o marketing da guerra do Golfo como um filme de ação líder de bilheteria era a mais nova afronta, como foi o recrutamento da música dos Beatles "Revolution" usada como um jingle de propaganda; ainda não estávamos plenamente familiarizados com a indecência emocional da comercialização.

Estamos agora há quatro anos em meio à seqüência habilmente comercializada da guerra do golfo, enquanto a viúva de Cobain, Courtney Love, recentemente vendeu os direitos da música "Breed" do ex-marido para uso por uma fabricante de videogames. Como escutar hinos do início dos anos 1990 durante o final da década 2000? Qual a sensação de ouvir "Smells like teen spirit" quando você tem 30 e tantos anos, algo que Kurt Cobain, morto aos 27, obviamente jamais saberá?


Talvez você espere que True se envolva nessas questões e avalie de modo convincente a música e o legado da banda. Afinal de contas, este não é o primeiro livro a contar a história do surgimento do Nirvana "das entranhas de uma tacanha cidade madeireira chamada Aberdeen, WA", como Cobain a descreve em um texto que acompanhava o primeiro single da então desconhecida banda, e do feito do grupo (citando o mesmo documento de falsa pompa) levando-o ao "sucesso, fama e subseqüentes milhões".

O livro de Michael Azerrad "Come as you are", publicado em 1993 e escrito em cooperação com o Nirvana, apresenta impressões íntimas de Cobain e seus companheiros de banda, Dave Grohl e Krist Novoselic, ainda que corte os bastidores e minimize o problema com heroína de Cobain.

Outra importante obra da sessão Nirvanologia é o livro "Heavier than heaven" (2001), de autoria de Charles R. Cross, uma biografia de Cobain criteriosa e bem escrita, porém frustrada pela complacência do autor com a versão de Courtney Love sobre os eventos e uma reconstrução fictícia das últimas horas de Cobain.

True poderia ter desenvolvido sua obra a partir do trabalho de seus predecessores e destilado informações reveladoras de sua própria experiência como o jornalista que talvez tenha passado mais tempo com a banda.

Contudo, para uma obra anunciada como a biografia definitiva da banda, "Nirvana" é uma produção estranhamente periférica e incompleta. Os golpes fortes, constantes e vibrantes da bateria de Grohl e os riffs provocantes e insinuantes de Novoselic eram tão importantes para o som do Nirvana quanto os "gritos sensacionais" de Cobain, como definiu o primeiro produtor da banda.

No entanto, nem Grohl nem Novoselic concordaram em conceder entrevistas, e True havia rompido com sua antiga amiga Courtney Love, atriz, cantora e celebridade provocadora com quem Cobain se casou em 1992. O livro "Nirvana" consiste em grande parte de trechos longos, aparentemente não editados, de entrevistas com coadjuvantes da história da banda, e True mal se esforça para julgar pontos de vista conflitantes, para assim tentar relativizar a importância de diferentes acontecimentos ou até para definir se o Nirvana realmente merece o tratamento especial de uma biografia de 600 e poucas páginas. "Por que uma banda seria favorecida em detrimento de outra?", ele pergunta.

É outro mistério também por que True favorece algumas considerações factuais em detrimento de outras. "A primeira ocorrência de uma guitarra completamente despedaçada, como todos concordam, ocorreu no Evergreen State College em 30 de outubro", em seu julgamento inexpressivo de historiador. Outros assuntos, obviamente mais importantes, não o interessam. Ele reproduz, aparentemente na íntegra, longos artigos que escrevera para a revista britânica “Melody Maker”, mas não vai além de citar o bilhete suicida de Cobain.

E então fica a dúvida, desconfortavelmente difícil de ignorar, se Cobain de fato escreveu um bilhete suicida, ou um rascunho de uma carta de despedida para os fãs (o Nirvana estava prestes a anunciar sua ruptura) posteriormente adulterado por outro punho.

O livro "Love & Death" (2005) de Max Wallace e Ian Halperin é uma acareação inquietadora de provas circunstanciais que sugerem que Cobain foi assassinado, e True poderia pelo menos ter considerado as dúvidas que ainda pairam acerca do mais famoso suicídio do rock 'n' roll.

O único importante mérito do livro de True está em sua cuidadosa atenção à política musical, sobretudo o relacionamento ambivalente de Cobain com o caráter rigorosamente anticomercial, do tipo faça você mesmo, que ele descobriu entre os músicos de Olympia, Washington, onde morou por muitos anos.

"Olá, somos fenômenos de vendagem de rock de um grande selo", anunciou Cobain para uma multidão no início de 1991, pouco depois de a banda assinar contrato com a David Geffen Company; e o Nirvana jamais conseguiu decidir se o seu sucesso contava como vitória ou apaziguamento.



Estúpido e contagioso

O que True mais valoriza no Nirvana parece ser a sua política sexual feminista e tolerante, rara em uma banda que tanto deveu ao heavy metal. Cobain e Novoselic se beijaram no programa "Saturday Night Live" (cena cortada pela “NBC” das retransmissões do programa), e Cobain nunca demonstrou timidez em entrevistas para expressar sua admiração pelas mulheres. Isso introduziu algo de novo ao mundo dos ruidosos riffs de Black Sabbath, quando ele usou um vestido de baile para o programa "Headbangers Ball" da “MTV” – afinal de contas, ele explicou sem hesitar, era um baile.

Mas mesmo assim a força da música do Nirvana pouco teve a ver com promessa de, nas palavras de True, um rock 'n' roll "com nuances mais femininas, e menos machistas". Como um político erótico (na memorável definição de estrela do rock de Jim Morrison), Kurt Cobain acreditava no bom relacionamento entre homens e mulheres. Como compositor, preocupava-se mais com a dificuldade de manter um bom relacionamento consigo mesmo.

De fato, a força do Nirvana devia muito às suas auto-segmentações. Como deixou claro a (lamentavelmente) energética produção de "Nevermind", estréia do grupo em uma gravadora grande, "grunge" não era realmente a palavra para essa música. A sensibilidade do Nirvana foi delineada e dividida entre influências do pop, punk, heavy metal e arena rock, e o talento de Cobain para melodias contagiantes era rendoso, em dissonância com seu desejo de ser inassimilavelmente detestável.

Então, uma das músicas pop mais cativantes de todos os tempos repreende a si mesma por sua capacidade de agradar e aos seus ouvintes por gostarem da canção: "I feel stupid and contagious" ("Eu me sinto estúpido e contagioso"). A genialidade do Nirvana, poderíamos dizer, foi revelar a postura do adolescente rejeitado perante os garotos mais populares como idêntica à do artista maduro em relação ao mundo corporativo: menosprezo enraivecido, associado a um desejo avassalador de se encaixar.

Muitas vezes recorremos à música pop para uma expressão cristalina de algum estado de espírito específico. Mas os estados de espírito do Nirvana são confusos de uma maneira profunda e excitante. Entre os refrões mais fáceis em que nos pegamos gritando junto com a música estão "Rape me", da música de mesmo título, e o terrível "Beat me out of me" da música "Aneurysm". Ou, na mesma música, diversão inocente soa como um massacre. "Come on over and do the twist" ("Venha e dê aquela volta") não estava no papel; mas quando Cobain grita as palavras no excelente álbum ao vivo da banda, elas ficam sem dúvida horripilantes. (Podem também conter um duplo sentido referindo-se à prática do usuário de heroína de "amarrar").

E se "In Utero", o último disco de estúdio do Nirvana, soava, mesmo antes da morte de Cobain, como vários rabiscos de um bilhete suicida, a vibração ameaçadora de quase todas as músicas também se tornava aparente. Em "Radio friendly unit shifter", Cobain canta "What is wrong with me?" ("O que há de errado comigo?") enquanto sua entonação diz, "o que há de errado com você?". O Nirvana estava sempre querendo dizer as duas coisas.

Quando nos lembramos de que Cobain foi definido como a voz de sua geração, é impressionante como essa afirmação não se comprovou – uma mácula em sua (e, mais ou menos, minha) geração mais do que nele próprio, talvez. Em Olympia, ele se tornou um nerd dos discos: um especialista promiscuamente erudito em todos os tipos de rock 'n' roll.

Mas ele não misturou e mesclou suas influências formando pastiches pós-modernos. Ele foi muitas vezes bastante sincero, mas jamais da forma afetuosa, freqüentemente sentimental, como muitos dos maiores artistas independentes de hoje. E quando, com ainda mais freqüência, ele era sarcástico, ele o era de forma agressiva e proposital, e não – no que parece o estilo mais disseminado da geração – superficial e inexpressiva.

Uma voz como a de Cobain é literalmente difícil de sustentar: na última turnê do Nirvana, os médicos o aconselharam a mudar seu estilo estrangulado de cantar, do contrário estaria correndo o risco de prejudicar as cordas vocais, diagnóstico com o qual qualquer pessoa que escute "In Utero" concordaria sem pestanejar. Mas uma voz como a dele é difícil de sustentar em outro sentido: é difícil segurar, ano após ano, toda a força e a dor de ser jovem. É também difícil permanecer assim tão completamente confuso.

Entretanto, há honra nessa confusão – já que descobrir como você se sente, em geral, significa abandonar uma das suas verdades. E o adolescente, assim como o artista transformado em mercadoria, está certo em se sentir confuso: certo em desejar ser popular; certo em desprezar a popularidade; certo em odiar os seus defeitos que tornam sua popularidade não meritória; e certo também em esperar que obtendo a merecida popularidade poderá de fato redimir, por um tempo, toda a categoria dos populares. Nunca fez sentido, exceto por uma música por vez, quando ainda faz.

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